Tinha uma madeixa de cabelo à fuhrer sobre a testa, e dois
incisivos em falta. Vivia bem disposto, e melhor ainda sempre que se punha a
tocar acordeão.
A bem dizer, nunca o surpreendi a franzir o sobrolho à vida,
salvo em episódicas situações como quando aceitava a boleia do Xico para ir ao mercado da vila.
Aí, e durante todo o trajecto, especado no banco de trás, com
a mão agarrada ao manípulo da porta, é que o seu ar se tornava um pouco solene:
“ A mim, ninguém me
apanha desprevenido… Acaso tenha que vir a saltar pela porta fora para salvar a pele, aí vou eu…”
E não vacilou em se lançar para a estrada, mais tarde, ao
deparar-se com a iminência de um despiste e o pânico de vir a ser arrastado
para o fundo da ravina.
O que deixou bastante confuso a meia dúzia de mirones que,
entretanto, afluíra ao local do acidente, foi não deparar em seu redor com
nenhum sinal do Vitorino, levando alguém a alvitrar:
“ Mas que grande finório! Não havendo mais nada a fazer ao
condutor, pôs-se a caminho da vila”
Ao que outro, com ironia, acrescentou:
“ A esta hora já deve estar abancado no Ti Flores a tocar acordeão”
E foi precisamente em cima desta suposição que todos se
surpreenderam com o súbito, mas arrastado som plangente vindo debaixo da
viatura:
era do acordeão que, sob a cabeça do Vitorino, parecia servir-lhe
de almofada eterna.
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esta foi pedida por uns dias ao Koudelka ou retirada de um filme do Kusturika logo que as luzes se apagaram... este nosso rapaz, de tempos a tempos, excede-se e dá-nos pérolas em vez de grãos de areia...
ResponderEliminarse a inveja não fosse um pecado mortal e eu um rapaz incapaz de pecar invejava esta não ser minha...
Caro af
ResponderEliminarA qualidade é atribuída em função de um número: o de travessias feitas, ( neste caso) no Tejo.
O custo de bilhete ainda é suportável e as esperas por um cacilheiro, embora mais longas, não desesperam...
Parece-me que a reflexão também entra aqui, mas em dose comedida.
Até ao Cais das Colunas!
R. M.