sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Borda de Água





Falar individualmente com gente avulsa, correndo o risco de não lhe ser prestada uma justa atenção, nunca mais!

Assim, decidiu alugar o anfiteatro do seu bairro para proferir, daí a uma semana, uma comunicação subordinada ao tema:

 “ Instantes decisivos, uma por rolo, mitos e manias”

Embora dotado de facilidade de expressão, sobretudo na esfera doméstica, à medida que se aproximava da planeada alocução, mais se acentuava a dúvida se seria ou não a pessoa indicada para a fazer.

E, para agravar mais ainda as suas apreensões, adveio uma constante má disposição, quebra de apetite, cefaleias, suores, tudo de acordo com o previsto pelos manuais, salvo o estranho formigueiro no corpo…

Mas tudo aguentou até à data da comunicação, tendo sido o primeiro a chegar ao anfiteatro, com vista a distribuir por cada cadeira uma folha volante, mencionando os temas a debater.

Após ter agradecido a presença de todos, logo abordou a questão do “ Instante Decisivo” conceito, quanto a si, historicamente respeitável,  mas  que a era digital levara à falência, mercê  da possibilidade de se efectuarem infinitos disparos ( aqui exagerou) a uma única cena, o que acabaria  por retirar a expectativa da captação do momento único.

E, como resposta à falta de qualquer reacção na sala, arrematou com uns decibéis mais acima do que era seu hábito: 

“Instante decisivo, só o momento da escolha no repescar das toneladas de fotos obtidas, digitalmente, num único dia. Perceberam? “

Dito isto, passou a refutar a ideia de que só muito de longe em longe seria possível obter uma boa foto, considerando tratar-se de uma crença obscura, tola e passadista, ao não levar em conta as inovações tecnológicas incorporadas nas câmaras, que acabaram por facultar um maior controlo do meio pelo operador, aumentando, assim, a taxa de sucesso durante o acto da captação.

Ao finalizar a abordagem da palestra, deu por encerrada a sessão, sem deixar de manifestar o regozijo pelos imaginários aplausos, despedindo-se com um sentido e rasgado agradecimento.

Depois de proceder à recolha, fila por fila, cadeira por cadeira, das folhas nelas depositadas, expeliu profundamente o ar dos pulmões como se o mantivesse retido há séculos, encaminhou-se, já com as chaves tiradas do bolso, para a porta por onde se esgueirou a passo de corrida.



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