quarta-feira, 25 de julho de 2012

Travessia (II)


Tinha uma madeixa de cabelo à fuhrer sobre a testa, e dois incisivos em falta. Vivia bem disposto, e melhor ainda sempre que se punha a tocar acordeão. 

A bem dizer, nunca o surpreendi a franzir o sobrolho à vida, salvo em episódicas situações como quando aceitava a boleia do Xico para  ir ao mercado da vila. 

Aí, e durante todo o trajecto, especado no banco de trás, com a mão agarrada ao manípulo da porta, é que o seu ar se tornava um pouco solene:

“ A  mim, ninguém me apanha desprevenido…  Acaso  tenha  que vir a saltar pela porta fora para  salvar a pele, aí vou eu…”

E não vacilou em se lançar para a estrada, mais tarde, ao deparar-se com a iminência de um despiste e o pânico de vir a ser arrastado para o fundo da ravina.

O que deixou bastante confuso a meia dúzia de mirones que, entretanto, afluíra ao local do acidente, foi não deparar em seu redor com nenhum sinal do Vitorino, levando alguém a alvitrar: 

“ Mas que grande finório! Não havendo mais nada a fazer ao condutor, pôs-se a caminho da vila” 

Ao que outro, com ironia, acrescentou: 

“ A esta hora já deve estar abancado no Ti Flores a tocar acordeão”

E foi precisamente em cima desta suposição que todos se surpreenderam com o súbito, mas arrastado som plangente vindo debaixo da viatura:

era do acordeão que, sob a cabeça do Vitorino, parecia servir-lhe de almofada eterna.
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2 comentários:

  1. esta foi pedida por uns dias ao Koudelka ou retirada de um filme do Kusturika logo que as luzes se apagaram... este nosso rapaz, de tempos a tempos, excede-se e dá-nos pérolas em vez de grãos de areia...
    se a inveja não fosse um pecado mortal e eu um rapaz incapaz de pecar invejava esta não ser minha...

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  2. Caro af

    A qualidade é atribuída em função de um número: o de travessias feitas, ( neste caso) no Tejo.

    O custo de bilhete ainda é suportável e as esperas por um cacilheiro, embora mais longas, não desesperam...

    Parece-me que a reflexão também entra aqui, mas em dose comedida.

    Até ao Cais das Colunas!

    R. M.

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